Era pequena quando o sino já ecoava nela, no começo, era só no sono. Enquanto dormia, num sonho chegavam as batidas, o som longínquo não incomodava, pelo contrário, acalentava, fazia companhia e, por isso, dormia mais leve. Depois começou a acompanha-la também durante o dia, enquanto brincava, tomava banho, se vestia ou aguardava o jantar. Olhava para os lados, buscava nos olhos dos outros a cumplicidade do som, que nunca veio; e então, soube que o sino era só dela e nunca seria compartilhado. - Talvez os outros tenham outros sons, este é meu.
Se a magoassem, a contrariassem, negassem a ela o que achava de direito, tinha um choro que parecia infinito. Deitava na cama, sofá ou chão e achava que era o fim; tudo terminaria em choro. Mas nada, os fins não vêm em choro, desconfio. Depois de alguns minutos, antes que o rosto secasse por inteiro, levantava de onde estivesse, saía pela porta e já estava curada. Mas nunca saiu sozinha, o sino a seguia. O incômodo que a fez chorar não era esquecido de súbito, só não se prendia muito a ele, entende? Num choro muito demorado, muitas oportunidades eram perdidas, a de sorrir, por exemplo. Ouvia o sino e, logo, a mágoa era lembrada, mas escolhia seguir, inclusive retomando os laços com os afetos que a feriram.
Então, quando dizem a alguém, com muito medo de altura, para não olhar para baixo, desconfio da eficácia do conselho. Olhar para frente não diminuirá a altura, tampouco fará esquecer do perigo da queda. Os sinos continuam a tocar, nada é capaz de silenciar um som que nos acompanha. Segurar firme e seguir, mesmo com medo, me parece a melhor decisão. Fechar os olhos, imaginar caminhos livres e menos tortuosos ou ocultar o antigo não durará muito, o som nos diz que a altura existe. Então, olha, olha sim. Mesmo com medo. Olha; porque a possibilidade da queda não é a certeza dela. A altura é um risco, mas também o impulso para a subida, uma sombrinha para o equilíbrio na corda bamba.
- Já são seis horas!
O sol resistente no horizonte, uma gota de suor por baixo da blusa escorre do colo até a cintura. - É a hora da Ave Maria. Abaixou a cabeça em respeito e, finalmente, olhou para o chão. Da altura que tem medo, mas que precisa enfrentar, nunca se esquece, nem deixa de olhar. Os sinos chamam para o final do café. Vira a xícara e retoma a travessia da corda. Pronto. Agora segure firme e olhe para onde os olhos quiserem ir.
2 comentários:
Olá Amanda! O tempo vaga à Luz e eu divago à sombra. Em tese, olhando assim, teria tempo de sobra, mas a conta não fecha. Como não fecha com a memória. Gostei do texto, apesar de discordar da frase chave que o sustenta, talvez pela minha curiosidade ou da formação, sei lá.
E o medo, hem! O medo gera aquela descarga violenta de "adrenalina", onde nosso instinto de preservação animal grita de forma irritante - enfrente ou fuja - e dá energia suficiente para as duas situações, mas é complicado - aprendemos a sermos educados e engolirmos nossos medos - desta a forma a educação nos mata pouco a pouco. da próxima vez que tiver medo - grite, vá para cima, voe na jugular do medo, e que se dane o mundo, enfim morrer de medo não é só uma expressão - é uma confidência fisiológica - morremos de tudo, mas morremos muito mais de medo.
Mas, enquanto degustamos aqui este expresso (gostei disto), há no texto a simplicidade do realismo fantástico de Borges - é dele este aforismo que aqui subscrevo (no meu tempo era assim - subscrevíamos - hoje copiamos e colamos):
"Somos nossa memória, somos esse quimérico museu de formas inconstantes, esse montão de espelhos rompidos." - Jorge Luis Borges
Assim, a protagonista vivencia o que a ciência denomina de Memória Episódica, que é sabidamente reconhecida como uma parte da memória de longo prazo que se refere à nossa aptidão em recuperar experiências pessoais vividas no nosso passado. Então, como pode verificar, a Biologia explica, mas não tira o brilho desta sensação única e pessoal da moça.
A memória de longo prazo tem outras duas subdivisões, sendo uma a Memória Semântica, onde uma quantia da memória de longo prazo cuida para formular as nossas ideias, conceitos e significados e a Memória Processual, onde uma quantia da memória de longo prazo que auxilia-nos a lembrar de como perpetrar os eventos. (Ex: dirigir, atender ao celular, usar o computador, ler seu blog, etc).
Hoje fui mais docente, sei lá, é o vício da memória - um abraço forte.
Que boa volta, Paulo! Nem sei se já disse (escrevi), mas suas visitas aqui são sempre muito ricas. E mesmo concordando ou não (como no caso), com a frase que fundamenta esse pequeno texto, você me trouxe Borges e essas explicações fabulosas da ciência, sobre memória (essa intrigante companheira que se ausenta quando mais precisamos e desenterra o que preferíamos esquecido). Para pessoas como eu, tudo é encantamento, mágica... mesmo a ciência. Obrigada pela visita ilustre!
Postar um comentário