domingo, 29 de janeiro de 2017

Só se conhece alguém depois de andarmos no escuro

  Vinte, trinta, uma centena de anos de vidas aproximadas, quase sobrepostas; num emaranhado de difícil precisão, olhar para os dois pares de pés descansando na poltrona da frente e, por um segundo, nem ter certeza de quais são os seus. Uma vida inteira de descerramento de cortinas e atrás de cada uma delas um gesto, um gosto, uma cena improvável de quando você ainda não estava lá. Choro, trauma partilhado, abraço de redenção:
- Desculpa por eu não ter estado lá naquele dia em que você ainda nem existia para mim.
   Anos de confidências sem palavras, não precisar dizer nada e parecer sempre dito; não explicar muito e ser profundamente compreendida. Dividir a fruta, às vezes dá-la  inteira; beberem na mesma garrafa d'água e o último gole deixar no fundo e oferecer; levar um casaco a mais, uma fronha, uma escova de dentes nova, porque a memória do par é falha; acha que está sempre calor, que as hospedarias baratas têm fronhas limpas a qualquer dia e que viajar o desobriga instantaneamente das preocupações com a higiene.

  Ser a pessoa do outro lado da linha, quando atravessar parece solitário e demasiado duro, ser o rosto constante do sonho, o nome sussurrado no delírio febril. Ser alguém do outro lado da  mesa, em que colocamos a senha do banco, do computador, do telefone, onde, sem querer, expomos o segredo de alguém que nos pediu para guardar o segredo, mas carregá-lo sozinha começa a bloquear o ar; onde esquecemos, sem medo, os boletins de notas vermelhas, a carteira de identidade com a foto pavorosa, as dívidas, a bolsa aberta, os bilhetes escritos e recebidos. Ser a porta em frente a nossa, sempre escancarada, não ter que se esconder, camuflar, inventar histórias para dizer um "não". Poder aceitar e recusar com a mesma brandura. Ser, sem travas tecnológicas de segurança, escudos medievais ou vidros blindados. Deitar num colchão de serenidade sob o mesmo teto de vidro e ficar confortável no meio dos dois silêncios. É verdadeiro, é seguro, é mágico, mas não se conhece as camadas mais interiores de alguém, quando as braçadas são dadas somente em ondas tranquilas.
 
  Só se conhece o profundo de alguém depois de ter passado horas em mar aberto, de ondas agitadas, quando respirar é uma exercício de sobrevivência muito delicado, quando a água abafa o grito, as algas se enroscam nos pés, as águas comandam a direção do corpo e o sal do mar, que respinga no olho, faz chorar tanto que não conseguimos enxergar farol nenhum, quando as batidas do próprio coração parecem ser a única possibilidade de audição. Na luta para não sucumbir, não se enredar na confusão das ondas, o outro é um peso difícil de suportar. Deixar para trás e pensar na própria travessia parece a escolha última. Nadar juntos, sincronia de ritmos -  esperar o outro levantar o braço, para só então, elevarmos o nosso, sintonizar a inspiração do parceiro com a sua e exalar nos mesmos segundos que ele - é absolutamente possível em águas calmas, mas na tormenta inesperada é uma prova que nunca sabemos ao certo como nos olharemos na areia; caso os dois cheguem.

  Só se conhece a primeira tinta de uma pessoa, quando o desenho da superfície se esgota, quando o olho busca, sem investidas invasivas, ir além do que a tela estampa e a própria figura permite o mergulho irreversível - depois de ter ido e visto, nunca mais poderá emergir sem a visão. A aquarela suave tem uma confusão de pinceladas nas suas bordas, invisíveis, aos que visitam uma galeria sem o tempo, disposição ou interesse de descoberta.
 Só se conhece o topo da cabeça de uma pessoa, depois de ter visitado suas raízes, sem pudores, luvas ou desvios. Levantar cada parte, enxergar suas zonas, suas ramificações e só então, embrenhar nos galhos para a subida.

  Só sabemos quem é esse que nos espera do outro lado do rio, depois de afogarmos sucessivas vezes na corredeira, buscarmos o bote e ele não estar disponível, procuramos uma mão e ela não vir, gritarmos um nome e ninguém responder. Depois de afundarmos e subirmos, do fôlego falhar e, logo, nos socorrer, os olhos que nos olham de fora, são esses que nos acompanharão noutras descidas difíceis. Sairemos da água exaustos, assustados, com raiva da violência da natureza, com o medo, ainda recente, da proximidade da morte e esses olhos que nos examinam, são eles que sempre estiveram, mas nem sempre foram tão absolutamente aparentes. Não nos esqueçamos desses olhos.

  Só se conhece alguém depois de muitas esquinas dobradas, de endereços errados, de cartas nunca respondidas, de falhar incontáveis vezes em adivinhar o pensamento dela, de dividir a fruta em partes iguais, mesmo que a fome dela pareça mais urgente, de não deixarmos o último gole de água da nossa garrafa para ela, porque também temos sede. De não levarmos um casaco a mais, nem fronha ou escova de dente sobressalente.

   Só se conhece alguém depois de uma deslealdade cortante nossa ou dela, um abraço não ofertado ou recebido, quando já estávamos lá. Só conhecemos a urdidura mais fina de uma pessoa quando dizemos  aquilo que ela não desejaria ouvir, quando enxergarmos, numa hora, o que ela ainda precisava esconder e depois de ouvirmos sua confissão mais cuidadosamente velada. Os olhos depois de cada impossibilidade nossa, são os que sempre vamos ver depois de limparmos o vapor dos vidros.
   Só se conhece alguém depois de sentarmos na calçada, com a sandália arrebentada, sem dinheiro, sem perspectivas aparentes, com um gosto de vinho barato e um resto de cachorro quente nas mãos e de um desabafo ordinário:
- Ai como tô cansada.
  E ela ainda estar ali inteira.
  Esses olhos que olham de cima para nossa miséria; são eles os únicos e verdadeiros. Não esqueci desses olhos nem quando o vinho era o mais caro. Só se conhece o fundo mesmo de uma pessoa, quando depois de toda intranquilidade do mundo ainda encontramos, no escuro, tateando as paredes, o colchão de serenidade de quando as ondas não se rebelavam.





quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

O amor continua na calçada, produzindo ecos e afastando pedestres

   Seguro um copo de vidro vazio, no meio da cozinha, parada, sem sede, livre de pressa e decisão.
- Mais um gole ou lavo e guardo?
Não sei; a sentença é absolutamente fácil e eu não sei como responder.
- Talvez eu deixe na pia.
  Puxo o banco de madeira com uma das mãos e com a outra aperto o copo. O vidro é fino, tenho que ter cuidado com a fragilidade do copo que, agora, eu seguro com as duas mãos. Se apertar demais, posso estraçalhar o vidro, eu sei que posso. Se, ao contrário, afrouxar demais as mãos, ele pode cair no chão da cozinha e eu ficarei, por alguns segundos, ilhada por dezenas de cacos ao meu redor; até que eu proteja os meus pés, me levante, pegue a pá, uma vassoura, uma sacola vazia e recolha a minha incompetência, meu deslize, a falha de não ter sabido segurar um copo. Juntar tudo, depois de arrastar geladeira e fogão, inclusive, e  embalar em jornal, cuidadosamente. Como se fosse uma preciosidade a ser ofertada, amanhã, quando o caminhão do lixo buzinar na entrada da rua; saio sempre com o lixo atrasado.

  Não encho o copo, não o afasto, tampouco resolvo desistir dele, mas olho com familiaridade a sua transparência azulada e um pouco de medo, também,  para o único copo em iminente possibilidade de mudança de estado. O copo de  bordas finas e linhas arredondadas, tem uma pequena elevação no vidro, que eu nunca tinha notado - deve ser defeito de fabricação - resolvo conferir os outros cinco, mas não me movo.
- Ganhei esses copos da minha irmã.
Lembrei alto. Um dia apareceu com meia dúzia de copos que ela ganhou repetido de presente de casamento. Quando tomo água na casa dela, penso que a água é minha. Água não tem gosto, mas o copo tem memória. Na casa dela, a mesma água. O marido dela não gosta dos copos, eu me acostumei rápido com a fragilidade deles.

  Enquanto o copo permanece suspenso na minha mão, no meio da cozinha, lembro-me da visão de agora pouco. E  se eu acordasse, de repente, no meio de um sonho bom e na cena interrompida eu me esforçasse para voltar, dormisse de novo e o sonho seguisse, como um filme, obedecendo ao comando de quem segura o controle? E se houvesse a possibilidade de algum tipo de naturalidade, seguir como se nunca houvesse sido interrompido? Se o meu cérebro apagasse o acordar-de-repente e o esforço para o sono? Se, de manhã, quando eu estivesse na cama, lembrasse do sonho e de um sono contínuo, sem interrupção? Será que alguma vez isso aconteceu? Será possível esse comando esquecido? Ou no final de um caminho, decidir continuar a caminhar e não existir limite? Ninguém segura, nenhuma linha define o instante. E se eu largasse o copo e ele não se quebrasse ou eu o apertasse e o vidro resistisse? Se nada acabasse, enquanto eu dormisse? Eu me esforçaria para segurar o copo ou esqueceria completamente dele?
  
   Eu já virava a rua, já pensava em chegar em casa e tirar os sapatos, abrir a blusa - um calor insuportável e o suor escorrendo pelas costas - tomar água gelada e comer a melancia da geladeira. Mas então, eles apareceram de novo, vi-os mais uma vez, como sempre os vejo. E a imagem de ambos é doce, é serena, toma a minha atenção por completo e refresca a parte da cidade onde o vento não chega. É como se sempre os encontrasse pela primeira vez. Desde que entendi quem são eles e que tipo de relação existe ali; nunca mais atravessei a calçada, fugindo da desordem da dupla. Ao contrário, se os vejo, vou ao encontro. Já nem sinto o desconforto do suor, eles me servem de copo d'água, às cinco da tarde, com o sol brilhando no alto do morro, com um monumento ao imperador.

  O cão late para mim, a dupla ocupa a calçada inteira; ele e a mulher que puxa a coleira. Ela já esteve muitas vezes vestida numa camiseta amarela, hoje estava de camisa de colarinho de viscose, estampada de laranja. Mesmo que eu só a tenha visto na companhia do cão, eu a reconheceria facilmente sem ele, pelas camisetas de cores fortes, pela calça jeans de todos os dias, pela dificuldade dos passos, pela franja bagunçada caindo nos olhos, mas, principalmente, pela calma ancestral que a mulher ostenta. O cão é rouco, tem um latido desesperado, que dirige para qualquer coisa a todo instante e ela só sustenta a coleira; como se ele estivesse no controle do caminho de ambos.
Passei por eles e me alegrei, porque existem.

  Mas enquanto eu me afastava, pensei na idade avançada do cão, na dificuldade cada vez mais aparente da mulher de se locomover e do tempo que eu os vejo pela primeira vez. E, então, a goteira da melancolia começou a pingar no meu cabelo. Quanto tempo eles têm? Eles sabem que há um acordar-de-sonho, um final de caminho, um copo que se quebrará um dia, mesmo que se tenha absoluto cuidado? Por quanto tempo, ainda, a coleira vermelha durará?
  O latido do cão invade a minha cozinha, os ecos do latido rouco dele me acordam da minha tristeza por um copo que ainda não se quebrou. Certamente, se as mãos que seguram o copo fossem dela, o copo duraria muito mais. Ela sabe, com mais precisão e naturalidade, a pressão que se deve empregar em certas delicadezas. Nas mãos dela, meia dúzia de copos durariam muito.

 Coloco o copo na pia e tampo os ouvidos para não ouvir os latidos do cão; não quero ficar triste agora. Na coleira vermelha que a mulher segura, carrega também minha esperança de um amor que não pensa em fim. Eu me apego a duração, eles ao momento. Essa mulher castanha e seu cachorro arrastado...quanto amor que não sei se terei. Que sorte a deles em se terem, que sorte a minha em os ver.

Nada acaba. É só um rio, em que as águas sempre correm. Só passa. Aquele amor da calçada e a resposta que eu nunca sei dar. O amor continua na calçada, mais vulnerável, mas continua produzindo ecos e afastando os pedestres que ainda não puderam aceitá-lo .
   Me desculpe, vida. Me desculpe por fraquejar ou embrutecer demais, se eu não cortar as mãos, piso no caco de um vidro, quando tiver a coragem de me levantar. Da ferida  não escapamos nunca; ou será nas mãos ou nos pés, essa é a única escolha.





terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Para as próximas segundas que você não estará

  Para conseguir levantar da cama na manhã de segunda,  quando você não está, tenho que afastar o lençol por toda a amplitude do colchão sem me sentir sozinha, abrir a cortina devagar, evitar o alarme do despertador no volume máximo e não adiar muito a me erguer - se não, me atraso. Para levantar na segunda de janeiro, depois do final de semana que você não esteve, preciso só desligar o ventilador antes de sair de casa, colocar uma música que não me lembre você e não atender ao telefone fixo; as promoções de segunda são as mais demoradas e as vendedoras as mais simpáticas.
   Para sossegar meu coração, porque você não volta, tenho que esquecer as horas do trajeto, cumprimentar o máximo de pessoas a minha volta e descobrir nelas novas possibilidades: amizades futuras, aventuras adormecidas, amores menos complicados.

  Para desentristecer minha segunda, porque eu sei que duas vidas recomeçam agora, tenho que evitar as filas, recarregar a bateria do celular, escolher dois poemas ao acaso, respirar o cheiro do amaciante da minha camisa bem passada, me encher de coragem e pedir ao síndico o número de um chaveiro; a porta é só minha agora. Para romper com o medo de não encontrar mais nenhum vestígio seu, tenho que ligar o computador e não apagar nossas fotos, seus emails, meus trezentos textos escritos para você e apenas dois dedicados, salvos na pasta "respiro".
  Para sobreviver a uma segunda de verão sem férias e com uma nova terça a ser escrita, tenho que me concentrar no almoço, escolher as saladas e os molhos e não pensar na sua alergia à lactose e a frutos do mar - comi camarão hoje. Para evitar o constrangimento das lágrimas públicas, tenho que fingir que nada aconteceu; parentes, amigos, colegas de trabalho só vão saber que você não faz mais parte das minhas segundas, a partir da próxima segunda ou da outra; sem precisão, sem pressa.

  Para não soluçar de fraqueza e saudade, quando eu encontrar alguma prova material da sua desistência: a sua cópia da chave, o par de ingressos do show que você comprou e não vai mais e o Pessoa que você deixou marcado na página 72, tenho que respirar fundo e ligar para minha mãe. Perguntar alguma receita de bolo ou para tirar mancha de vinho, notícias sobre a avó e dizer que a amo. Ela vai saber que você não está mais e não vai me perguntar o motivo, porque hoje é ainda segunda e ela terá a semana inteira para sondar.
  Para não colocar o peso da sua ausência no primeiro dia da semana, preciso passar a agenda a limpo, marcar com o cabeleireiro e fazer um corte radical, nada de suavidade para janeiro e fevereiro; se não for outra, ao menos, pareço outra.
 
  Para não me entregar a toda sorte de boas lembranças na tarde de segunda, tenho que ser produtiva: terminar o trabalho, enviar o relatório, imprimir o cronograma,  recomeçar a  leitura, programar a faxina, tenho que remover suas manchas, as marcas do seu calçado do tapete da sala, jogar seu sabonete, loção pós barba e perfume no lixo. Tenho que ouvir outras músicas e listar sozinha os filmes em cartaz.  Para não perder a postura nem meu emprego já na segunda, tenho que ser simpática com o chefe, aceitar o convite da colega nova para um café e demonstrar motivação, mesmo que eu não quisesse vir nesta segunda. Tenho que planejar uma festa, um programa, uma conversa com as amigas que não vejo há algumas semanas e tentar não falar das segundas que você nunca mais vai estar.

  Para não chorar desesperada ao chegar em casa, depois de um dia de segunda aterrador, tenho que deixar a TV desligada, não me aborrecer com o noticiário que mente ou com a apresentadora que vocifera impropérios descarados em desfavor à vida. Para distrair meu espírito desse pesado desencontro, tenho que continuar Pessoa a partir da Página 72, que começa: "Disse Amiel que a paisagem é um estado de alma, mas a frase é uma felicidade frouxa de um sonhador débil". Tenho que me concentrar na paisagem e pensar que estado de alma tenho agora; se partida ou projeto de um longo recomeço. Para não me desesperançar do que acontece à minha porta, tenho que virar o rosto para o lado de lá das cenas desumanas de um cotidiano repetido, de leituras extremistas, de ideias limitantes, das invisibilidades brutais que invadem as praças, os prédios e ancoram o meus sonhos num fundo estranho e lamacento.

  Para não sentir o tédio da segunda que você me devolveu, tenho que cozinhar um peixe, lavar as folhas da alface e da chicória que ainda estão boas, tenho que beber o resto do vinho português que eu ganhei de ano novo e brindar ao prato cheio de peixe, folhas e queijo. Para não me sentir embriagada e sozinha na segunda que eu resolvi beber, tenho que me movimentar, não me entregar ao sofá ou a solidão. Preciso dançar um pouco, coloco Caetano em espanhol e tento não chorar com a Paloma triste. Se eu continuar de pé, tenho que lavar o único prato na pia, a única faca e garfo e não dizer:
- O único prato.
Nunca dizer, numa segunda triste, as palavras "um, só, único e segunda triste".

  Para não me abater e cair na cama com gravidade na segunda-feira, de jantar regado com meia taça de vinho tinto, tenho que não olhar para sua foto na mesa, não achar que você gostaria do pedaço de pudim na geladeira e que amanhã você acorda cedo para a sua aula de terças e quintas. Para estancar a corredeira que o meu coração prepara, tenho que me fortalecer nos planos de ginástica da academia que eu me matriculei há duas semanas e ainda não fui, separar as suas últimas roupas das minhas e gostar de ver o apartamento maior nesta segunda.

  Para me aquecer do vento ruim da meia noite e não me instalar numa insônia prolongada, tenho que ler mais trinta páginas, tomar um banho com algumas folhas de alecrim, enquanto o chá de maçã esfria na geladeira. Para ultrapassar a segunda-feira sem receio de uma outra segunda na terça, tenho que flutuar na prosa poética que você escolheu não terminar, tenho que aceitar a minha vulnerabilidade e chorar baixinho não pela segunda-feira partida, tampouco pela humanidade desencontrada ou pelas fechaduras trocadas, mas pelo desassossego do poeta maior que vai vir velar meu sonho esta noite. Para sossegar meu coração, menos retratos pendurados, mais sonhos paridos. Para sossegar meu coração não há meio, maneira ou escolha seguros. Para dormir uma noite inteira de segunda: coragem, vinho, banho, chá e poesia na beirada da cama. Acho que assim não há como os bons sonhos não me visitarem neste final de segunda. Amanhã já é terça, possivelmente a saudade aumentará, mas terei mais um dia de punho erguido. Se na segunda eu não desmoronar, já terei inventado uma outra semana.



domingo, 22 de janeiro de 2017

Se ninguém ouve, por que canta?

  Eu posso andar pelo outro lado da cidade, posso escolher um piso mais regular para as minhas corridas, posso mesmo ir por um caminho arborizado, menos cinza e com bem menos semáforos, até sem nenhum, se eu quisesse. Mas não tenho ido; não quero. Não é porque esse seja mais seguro, não é pelo medo da instabilidade de uma rota desconhecida; é um ritual.
  O prédio verde de esquina me chama e, de repente, é como se eu não pudesse me afastar muito dele. É a minha visita diária ao que não é casa, tampouco lembranças remotas ou desejo de regresso. É uma ida que eu não evito, mesmo que ninguém me receba ou, ao menos, me veja passar pela calçada.

  Então, hoje, pela manhã, eu coloquei o tênis de solado amarelo - nunca achei que usaria amarelo - e repeti os passos. Atravessei dezesseis semáforos, passei por três padarias, duas bancas de jornal, quatro clínicas veterinárias, três academias de ginástica, quatro escolas e duas praças.  O prédio verde não me emociona, particularmente, mas gosto de passar por ele, saber que ainda não trocaram o portão baixo, não mudaram a cor do verde nem consertaram uma das pilastras da garagem, que continua com uma falha no reboco - alguém que estacionou mal ou na pressa de tirar um carro, deixou o tijolo aparente e nunca mais voltou; e, principalmente, ter esse recorte, um pedaço que permanece, mesmo que tudo ao redor tenha mudado tanto. O prédio verde é um resistente, uma ilha psicodélica, rodeada por coberturas de linhas retas, paredes brancas e vidros espelhados.

  Não vivi lá por mais de vinte meses, acho. Mas se passo na calçada e olho para a janela de onde eu buscava ver o céu todas as manhãs, eu me lembro do taco solto entre a porta e o armário embutido que, num dia, cansada de chutá-lo, eu colei folhas de jornal nas suas costas e o encaixei para nunca mais sair - talvez ainda esteja lá. Lembro da cozinha de azulejos brancos e uma bancada comprida de fórmica, que ia até a pia; do banheiro azul, com uma banheira antiga e um espelho do armário, descascado nas pontas e mais, lembro que era apertado, não tinha elevador, os galhos da árvore da rua iam até a minha janela e, por isso, eu encontrava folhas secas, penas de pássaros e, às vezes, até alguma ave perdida na minha cama. Lembro de chegar de madrugada, subir as escadas muito escuras e de degraus apertados, que eu não tinha medo e que, às vezes, eu abria a porta e já tinha café recém feito à mesa. Mas nenhuma imagem, nunca foi tão presente, quanto uma voz. Um canto que saía de uma das portas do prédio e escorregava pelos corredores.

  Era um canto suave, trechos de músicas folclóricas, salmos e partes de músicas clássicas, um pouco abafado pelos tijolos e portas. Era uma voz baixa, que eu só descobri semanas depois da minha chegada no prédio, começava de manhã, bem cedo, antes das seis e nunca passava das oito da noite; não durava todo o dia, é claro. Mas as canções, no corredor, eram certas, se eu saísse e só escutasse o bater das portas, as conversas em família, os latidos dos cães, bastava eu sentar num dos degraus e, esperançosa, aguardar por alguns minutos, que elas chegariam e se instalariam em mim,  numa festa que eu  participava sozinha.

  O canto vinha do apartamento de um casal bem idoso. Moravam sozinhos, eram bastante independentes, só precisavam de ajuda, às vezes, com as sacolas. Quando os conheci, caminhavam pela manhã e ao final da tarde, iam à igreja próxima, ao mercado e visitavam as filhas que moravam no mesmo bairro. Mas em um ano a saúde dele ficou muito debilitada e eu quase não o via mais, mas o canto dela continuava. Não sei se mais alguém ouvia, as filhas vinham pouco e, depois descobri, o homem estava surdo há muitos anos. Mas a voz dela era resistente. Mesmo nos dias mais difíceis, ela continuava.
 Quando o companheiro ficou internado por meses e depois ela quebrou uma das pernas numa queda em casa; ainda assim seu canto não parou.

  Por algumas semanas, ficou afastada do companheiro de quase cinquenta calendários e a voz vinha triste, atravessava melancólica a porta, ainda mais abafada, não pelo concreto, mas pela angústia da solidão dele e dela, que afastados dos olhos um do outro talvez ficassem menos saudáveis. Mas o seu canto não se ausentou nem nessa dor de velhice.
  E quando ele voltou, eu soube pelo canto dela; porque ficou ainda mais místico e mais potente nos tons. Mudei. O prédio não era mais verde, mas era maior e mais claro. O taco colado no jornal e os galhos da árvore na minha cama fizeram falta, mas a voz dela eu ainda ouvia, quando descia outras escadas; porque pareceu me tomar para sempre. Quando eu soube da morte dele, anos atrás, fiquei pensando em como ela resistia agora e se cantava, que música e em que tom saía. Pensei se o canto dela era abafado de dor e solidão ou arejado de aceitação e liberdade. As sacolas, as idas à missa, à praça, os caminhos que fazia, as visitas das filhas, se as portas eram trancadas e se ela se lembrava de fechar a válvula do gás em nada disso eu pensava. Mas o canto dela, eu quis muito que, além de mim, alguém ouvisse.

  Hoje, pela manhã, depois de já ter passado pelo prédio verde eu a vi caminhado pela rua. Está bastante velha, anda com dificuldade e parece mais frágil e pequena, vinha amparada por uma acompanhante jovem, que tinha um fone de ouvidos e com um andar mais apressado do que ela podia acompanhar. Cumprimentei-as, acho que ela não me reconheceu, mas sorriu. Lembrei da primeira música que ouvi no corredor, bem antes de saber quem cantava. E pensei no desperdício de um canto que ninguém ouve. O marido surdo, as filhas ocupadas, a acompanhante com um fone de ouvido e eu longe. Passei por ela, mas queria ter parado para dizer que ainda ouço o seu canto nos degraus.

   Duríssima visão, dulcíssima voz. A velha casa não me chama, vou ao encontro do canto dela. Eu sempre me encontrei no canto que ninguém mais ouve. Dos meus pés e da voz dela, ninguém se dá conta, mas continuamos, porque o que ninguém mais vê acaba por ser o que verdadeiramente somos. Já estava longe e o canto vinha insistente "Ó Deus salve o oratório,  ó Deus salve o oratório...". O canto dela resiste, porque nunca teve um destinatário certo. No fim, o canto que ninguém ouve é o que nos mantém para nós mesmos. O que eles ouvem da gente é só um pouco do que temos.




quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Só não vá morar em Miami

   Você pode sim, juro, sair a que horas quiser e se achar por bem não vir, pode se ausentar também; desmarcar vinte minutos antes ou dois dias depois, tanto faz. Pode chegar sem anúncio, se a porta não estiver já aberta é só assoviar e eu vou louca atender. Não precisa falar sobre o seu dia, se não quiser, e se ligar a TV para assistir ao futebol, eu não torço contra.
   Você pode dormir com todas as mulheres do mundo, achá-las bem mais bonitas, atraentes, inteligentes e engraçadas do que eu. Você pode dividir seu uísque favorito com elas, preparar o jantar e lavar a louça, enquanto elas falam coisas interessantes para você ou leem a sua poesia em voz alta. Você pode ouvir, com elas, as canções que ouviu há pouco comigo; pode até ouvir as que eu fiz você, pela primeira vez, ouvir. No dia seguinte, você pode mandar entregar as mesmas flores baratas daquela banca da esquina do seu trabalho e escrever um bilhete no papel arrancado da sua agenda e pode, também, usar a palavra: amor. Eu não me ofendo.

  Pode se oferecer para levar as bolsas dessas mulheres e pendurá-las no seu ombro. Podem parecer um casal, andando de mãos dadas, apontando as vitrines, desfilando pelas galerias da cidade e, felizes, podem rir também, muito, gargalharem se quiserem. E se alguma coisa fizer você se lembrar de mim, durante o passeio, pode me contar depois, sem ressentimentos, juro. Você pode dar o mesmo livro que me deu quando saímos pela terceira vez, o mesmo, e pode ser até no segundo encontro; o romance é bom, não merece uma espera maior que a minha.

  Você pode deixar o cabelo crescer, pode desistir da barba, ganhar ou perder quilos o quanto quiser, que eu nunca fui de medir circunferências afora. Pode vestir camisas polo, todas as cores que quiser, as listradas também, pode usar calças justas e sapatos de bico fino. Se quiser, até as botas, fivelas e chapéus de cowboy, você pode usar, que eu não me envergonho; mesmo que eu não entenda bem o porquê disso agora. Você pode fazer uma tribal na panturrilha, pode tatuar um ideograma japonês ou uma frase em árabe e acreditar no que o tatuador-tradutor diz, sem problemas, que eu acredito também, se quiser. Faça conexões perigosas, frequente associações estranhas, clubes do vinho, de RPG ou maçonaria, se quiser. Pode correr riscos e saltar de paraquedas, frequentar aulas de jiu-jítsu, comer cereais feitos em casa e eu não estranho muito.

  Você pode responder a mensagem sedutora dele, pensar nele enquanto escreve e trabalha, pode beijá-lo e lembrar do beijo durante a noite, o dia, a semana, o mês inteiro. Pode dar-se inteira para ele, passar um final de semana em Teresópolis, pode querer ir para Grécia com ele. Você pode pensar em filhos com ele, sem ele, sem mim, só em filhos. Você pode se afeiçoar ao cachorro dele, pode gostar mais da mãe dele do que da minha, pode se tornar a melhor amiga da irmã dele, que eu fico muito bem obrigado. Você pode dar uma cópia da chave de casa para ele, pode dirigir o carro dele, pode não bater nunca o carro dele, mesmo que o meu já tenha sido, nas suas mãos, perda total. Você pode fazer círculos com as unhas, de leve, na nuca dele, esperá-lo dormir um pouco no seu ombro e só depois acordá-lo, quando o braço já estiver dormente; e eu não me desassossego muito pensando nisso.

  Se quiser, pode ser simpática com o porteiro que nunca me cumprimenta, pode ser íntima da vizinha com quem eu briguei no elevador aquela vez, afinal, a cordialidade e o esquecimento sempre foram duas companhias poderosas da sua sociabilidade. Você  pode voltar embriagada o quanto quiser, gritar na rua, apertar o interfone do apartamento errado e eu vou sempre buscá-la, sonolento, mas vou. Você pode não me pedir para ficar, pode ir embora sem chorar e esquecer de devolver a minha camiseta que eu tinha desde a faculdade. Você pode ir, juro. Pode rolar a maçaneta,bater a porta, chamar o elevador e eu vou ficar parado, desiludido, mas mudo; sem atrapalhar o seu caminho, sem perturbá-la numa resolução difícil.

  Mas por favor, não me traia, prometa. Só me prometa que nunca vai dormir de meias, passar férias na Disney e morar em Miami, por favor. Mesmo depois de passado o amor, se quiser suas coisas eu devolvo cada uma, sem dor, se quiser deixá-las aqui também não queimo, rasgo ou jogo pela janela do apartamento. Mas não se torne alguém com quem eu me assuste num encontro ao acaso, que eu me pergunte como pude  ter convivido, alguém que eu não reconheça, que eu não encontre um traço sequer do desenho que eu fiz. Só, por favor, não se traia e deixe que a propaganda da TV o corrompa, que o seu emprego o capture, que a sua ambição o cegue de tudo aquilo que enxergávamos tão bem juntos. Só, por favor, não se distraia e perca seus minutos, fazendo pose para sair na foto de pessoas que você mal conhece, reclamando do garçom ou dos impostos, enquanto brinda com seu vinho caro.
 
  O resto, por mim, já está perdoado, que eu não sou nenhum modelo de santidade para regular os prazeres alheios. Ninguém é. Mas se quiser só amar a mim, não fico ofendida. Mas não vá pensar em Miami, não é um bom lugar para gente. E me ame que eu aprendi a gostar assim. Depois de tudo, todos e todas, ainda me ame.
  Só, por favor,  não vá morar em Miami. Miami é o lugar mais longe, é aquele que o afasta completamente desse nosso apartamento alugado e dessa vida que parece ordinária, mas que nós escrevemos tão bem. Miami não é a sua ou a minha casa. Juntos ou separados, não vamos a Miami nunca, por favor.




domingo, 15 de janeiro de 2017

Depois que ele chegou, nunca mais pode ir embora

   Quando ele chegou, era a  parte escondida do meu pai. Não havia um jeito mais ameno de ele abrir a porta, quando ele colocou os pés na nossa rua, já sabia que o teto de uma casa desabaria. Acho que ele teve medo, acho mesmo que adiou sua entrada, mas, avassalador, o homem-brisa chegou e matou meu pai de novo. Nem tínhamos nos recuperado da falta que ele fazia e o homem anunciou uma outra morte. Ainda mais brutal, mais intensa. Dor de desconhecimento.
Cada um na casa lidou como pode com a vendaval que se instalou na sala. As cortinas balançaram, os vasos de flor foram ao chão, estalaram pisos, dedos das mãos, alguém ficou muito vermelho e gritou, algumas portas bateram, teve choro e eu fiquei muda. Silenciosa e ausente de cor, de voz, até meu coração acho que parou um pouco de bater; faltou tudo, menos amor. Eu o amei até sob a tempestade que ele trouxe.

  Quando ele veio, eu não era filha única, nunca fui. Nasci muito completa já; pais, irmãos, tios, primos, avós, madrinha e padrinho, tia-avó e tinha até um sabiá que morava na nossa varanda. Mas quando aquele homem alto chegou à minha casa, pela primeira vez eu achei que me faltava alguma coisa e eu só chorei à noite, escondida, porque havia descoberto a minha falta. Não contei a ninguém no dia seguinte, quando eu acordei, no domingo, a casa era triste, todos pareciam de ressaca ou doentes, só eu tentava agir normalmente, mas acho que também não conseguia. Fui à missa sozinha, errei todos os ritos, mas ninguém quis sair de casa, naquela manhã. Depois da ventania, ele voltou outras vezes, a sua chegada foi, aos poucos,  ficando mais suave e eu o esperava sempre no portão.

  Quando ele chegou, fez nascer meu pai de novo. Eu, diferente da minha mãe e dos meus irmãos, não tive o luto da descoberta. Olhava os gestos, os pequenos olhos esverdeados, as pálpebras rasas, o nariz grande, os lábios grossos e sabia que ele e eu saíamos de um mesmo lugar, era uma parte minha que eu não me negaria a conhecer. No início, conversávamos amenidades de elevador, eu só queria escutar a sua voz e quando ele falava, meu pai voltava e eu podia sentir o cheiro dele de novo. Quando ele ia embora, eu corria para ver ele descer, a cabeça inclinada para trás, os passos firmes e apressados e a boca meio aberta, por onde ele respirava - devia ter o mesmo desvio de septo que nós - trazia meu pai e a mim mesma, nos passos largos e pés grandes.

  Eu o amei, mesmo quando, por muitas horas, eu me lembrava que ele era os dias em que meu pai chegava em casa mais tarde, era o futebol das quartas, as horas extras no trabalho, ele era a tristeza no final da noite dos domingos, o nó com o qual meu pai se entalava entre uma colherada e outra, ele era a gola alta de lã, o colarinho abotoado que sufocava meu pai e que ele insistia em usar, por conta da ocasião. Mas ele era também um amor clandestino, uma paixão avassaladora, um brilho nos olhos do meu pai, uma vida se fortalecendo no desejo, rompendo compromissos, se esgueirando pelos becos escuros, pelas palavras que não se fala em casa, mas que na rua soa como liberdade. Ele era o meu pai que eu não conhecia e que eu gostava de saber que um dia existiu e num mesmo tempo que o homem doce, que condenava mentiras e que morou na nossa casa. 

  Ainda gostei mais dele, porque ele trazia nos bolsos da calça jeans, que ele sempre repetia, mais vida, depois de uma morte tão desalentadora. Porque mesmo sob a tempestade,  mesmo depois dos desabamentos sucessivos do nosso teto, ele, insistente, tímido, sempre voltava. Com seus trejeitos e partido do cabelo igual ao dos meus outros irmãos, com histórias, com a mesma cara de nós todos. Num domingo ele veio, almoçou, ajudou a lavar a louça, ensinou matemática para um dos meus irmãos, escutou o disco do Clube da Esquina com outro irmão, da mesma idade que ele, falou sobre política com a minha mãe e, de repente, ele era daqui, igual ao sabiá, as tias, os primos, ele era meu irmão. E foi a tarde mais calorosa do nosso inverno, foi o dia em que ninguém em casa vestiu mais o preto. E não voltou.

  Quando ele sumiu, fiquei de luto o dobro de tempo, por ele e meu pai que morria de novo. Depois fantasiei o quanto pude, um novo irmão desconhecido, quem sabe? Procurava em estranhos na rua, a herança perdida de novo. Outros pares de pálpebras rasas, outros olhos esverdeados, outras mãos e pés grandes, outra possibilidade de completude.
  Foi olhando para ele, me aproximando, conhecendo nele, o que eu desconhecia em meu pai, que eu descobri que estamos sempre incompletos, fragmentados, espalhados em segredos, rejeições, histórias que se passam, enquanto tomamos banho ou assistimos a um filme. Foi depois da tempestade que ele trouxe, que eu descobri que somos muitos, que a vida de todos os dias, de ninguém, conhecemos verdadeiramente e por inteira. Nem o sabiá eu acho que era só nosso, talvez dormisse muitas noites na varanda do vizinho. Que besteira achar que algum pássaro nos pertencia.

  Quando ele chegou, eu vivi a experiência da traição, do segredo, da mentira e da raiva, mas vivi muito mais a plenitude da descoberta, da humanidade que erra, da fatalidade de tentarmos cumprir o que nos pedem e que quase sempre nos fazem esconder ou deixar de viver uma outra verdade. Ele veio pelo sangue, pela curiosidade de uma vida que também pertencia a ele e partiu levando mais sangue e mais vida.
Foram embora, meu pai e meu irmão, e levaram com eles uma história que também era minha. Sempre houve quem desconfiasse do laço, do verdadeiro genitor do rapaz que apareceu num sábado e sumiu num domingo, meses depois, mas era meu irmão, com os mesmos genes ou não. Era uma vida nova, depois dele nunca mais fui a mesma e acho que depois de nós, nem ele nem meu pai também puderem ser.  Não houve rancor nem mesmo perguntas, mas tive saudade. Tenho ainda, aos domingos, se um sabiá canta e eu ouço Clube da Esquina.



sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Que nome tem esse nome que um nome não explica?

  Quando eu não consegui dormir uma noite inteira e achava que era por causa do calor de janeiro, quando eu atrasei todos os trabalhos da semana e culpava o tempo corrido, mas fazia um bolo diferente a cada dia,  biscoitos e pães também. Enquanto eu preparava um banquete e olhava para a janela, para o celular, para a porta e os ponteiros do relógio de parede, feito o cão, quando eu demoro a chegar em casa. Quando eu tive fome de uma comida que eu nunca comi e abri a geladeira na esperança dela estar lá, quando o telefone não tocava, quando nenhum email chegava. Quando eu achava estar doente, sem nenhum sintoma. Enquanto fazia sol e eu não sabia se era bom e depois chovia e eu não tinha opinião alguma, quando a notícia no portal, telejornal ou pelo comentário de alguém, no corredor, me entristecia e eu não falava.

  Quando depois da meia noite eu resolvia limpar os vidros da casa, quando antes das seis da manhã eu saia para correr e a padaria ainda estava fechada, enquanto eu fazia dez cafés pela manhã e tomava um, os outros nove eu oferecia, insistia mesmo para que alguém os tomasse. Quando eu fazia uma lista de metas para este ano e no meio dela eu me levantava para atender a porta, de onde ninguém me chamou e eu esquecia o que eu queria colocar no papel. Quando o cão me olhava, porque era hora de ir para a rua e eu havia esquecido. Quando eu segurava a coleira dele com tanta força, como se eu o quisesse  ater a mim para sempre, como o filho de uma mãe dramática.

  Quando eu perdia a fome e no lugar dos bolos eu lixava uma parede ou pintava um armário de uma cor que depois eu odiaria.
- Laranja! Um criado laranja no meu quarto. Um por do sol na beirada da minha cama.
  Enquanto eu procurava um destino para viajar, nas férias, daqui a dois anos. Quando eu olhava para os rostos na rua e procurava alguém ou um sinal, em alguém, que me respondesse a uma pergunta que eu nem sabia se existia. Quando de noite eu olhava para o céu, não como quem contempla, mas como quem espera, procura.

  E de manhã, se eu ficasse mais cinco e depois dez minutos na cama, eu não dormia, mas aguardava um som, um sopro, um latido que me pedisse para levantar. Quando, eu chegava em casa, deitava no sofá e achava os livros muito desorganizados e tortos, eu os tirava  da estante para limpar e arrumar e já no terceiro eu abria e lia as anotações que eu mesma tinha feito, mas achava tão novo, tão absurdamente genial para alguém que era eu e não parecia e eu me perdia no tempo, nas horas, na espera. A noite chegava e eu não tinha limpado ou organizado mais que uma dezena de  livros.

  Mas, então, sem anúncio, surge uma pequena nota, um bilhete, chega um email, uma saudação estrangeira e uma calma gentil aparece na porta, senta na minha sala, em frente aos livros ainda bagunçados e pede um café e, sem pressa, levo-o forte, com um pedaço de bolo; ela elogia. Eu não pergunto quanto tempo ela fica, ela também não me fala sobre o tempo ou a minha aparência. A calma e eu no meu sofá, relaxadas, sem olhos para o relógio, porta, janela ou fogão. De repente, eu era a espera por alguém a quem nunca me pareceu faltar, mas era, era essa a espera. A calma me trazia o recado.

  E no outro dia, depois de uma noite inteira dormida, depois de me levantar atrasada, passar o único café e tomá-lo inteiro, eu trabalhava sem checar meus emails a cada cinco minutos, sem  fazer bolos desesperada, sem lixar portas, paredes e pintar os móveis de uma cor esquisita, eu voltava à casa sem ter que organizar os livros, bastava escolher um e lê-lo até o sono chegar. Era a falta que eu só soube sentir no dia em que voltou quem eu achava que já tinha me acostumado à ausência.

  Depois da descoberta, eu quis fazer anúncio na internet, outdoor na avenida, desfilar em carro aberto, exibindo o sentimento da maneira mais pública que eu pudesse. Era a saudade que eu negava, era saudade que eu só soube quando ele virou a maçaneta da porta e segurou a minha mão. Era saudade escrita em caixa alta. Foi só abrir a porta e ele segurou o meu soluço, as minhas angústias de dois meses e  com uma das mãos ele segurou meu coração. Como se chegasse na minha vida agora, como se estivesse sempre chegando. Quando eu não sabia onde doía, ele acenou, a calma me visitou e, finalmente, eu não tinha um banquete preparado, mas o convidado chegava na hora certa.




quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Ele fazia cadeiras

  Enquanto o homem mais velho fazia cadeiras na marcenaria do quintal, o homem da casa de cima, levava a
comida numa marmita de inox, que ela preparava - muito feijão, menos arroz - a menina circulava as palavras que não conhecia no livro que sempre acabava antes do final do ano, o menino deixava o cabelo crescer e cantava as músicas do rádio; a pequena assistia ao programa de auditório da TV com dançarinas que sorriam para a câmera.

  O homem mais velho cerrava madeiras e o cheiro de madeira cerrada é tão bom.
 - Só o pó que não.
 Reclamava a mulher, enquanto estendia as roupas no varal - meias brancas, alvíssimas. Ele fazia as contas na sua calculadora cinza e ela descascava beterrabas para o suco, a menina brincava com o elástico de dinheiro, o menino comia um ovo cozido e a pequena ouvia Elis Regina na rádio AM.

  O homem mais velho lixava, pintava e colocava as peças no tabuleiro de xadrez e o menino assistia, a menina perguntava e a pequena segurava um cavalo, que acabou ficando com ela de tanto gostar. O homem assobiava para os três irem almoçar, a mãe colocava a mesa. O homem mais velho se despedia, o menino corria. - Quem chegar por último é a mulher do padre. A menina gritava que ele iria cair e a pequena já aceitava se casar com um padre.

  O homem mais velho acordava cedo, ligava sua lixa, empilhava madeiras e o menino já pulava da cama, a menina resmungava que queria dormir mais e a pequena só dormia ou fingia, demorava a levantar. O outro homem já tinha ido à fábrica, a mulher ligava sua máquina de costuras e a pequena, depois de sair da cama, se encantava com o vestido vermelho que nascia pelas mãos que ela amava.

  O homem mais velho colava azulejos no fundo da bandeja de madeira, o homem da casa de cima consertava o chuveiro, a mulher limpava o ferro de passar roupas com a esponja de aço, a menina coloria a flor de um cartão para o dia das mães, o menino colava figurinhas com os rostos de jogadores de futebol no álbum que ganhou de aniversário e a pequena morava debaixo da mesa de madeira, com janelas de lençol.

  O homem mais velho aspirava o pó da madeira e tinha tosse toda noite, o outro homem temia ser dispensado do trabalho e, por isso, a mulher dizia:
- Não vão incomodar seu pai.
  O menino torcia para o Vasco, a menina era Flamengo e a pequena só achava bonito o gramado verde e a pintura branca do campo de futebol.

  O homem mais velho fez sua última cadeira e a lixa se calou. O homem que morava em cima se mudou, a mulher levou a samambaia no caminhão de mudança, a menina uma mochila azul, o menino levou a bola e a pequena ninguém sabe se foi . O homem fazia contas no papel com um grafite grosso, a mulher  fazia bainhas, a menina lia livros da biblioteca do bairro, o menino quebrava vidraças com a bola e a pequena inventava o mundo. Hoje, só ela continua inventando o mundo. Ela nunca parou o ofício, porque é o seu cheiro de madeira, às vezes aspira o pó e tosse uma noite inteira, mas pela manhã a madeira chama. A vida não se explica, só dá a madeira de cada um. Serrar, lixar, pintar, esperar secar e montar cada peça em seu lugar.

  Ele fazia cadeiras, mas nunca as usava para sentar. Ela inventa o mundo, mas não sabe como chegar lá.



domingo, 8 de janeiro de 2017

Tá com pena? Leva o coitadinho para a sua casa.

   Há três semanas o cenário é o mesmo, os detalhes eu fui descobrindo aos poucos  porque, no começo, era só um caminho de passagem, era só o lugar em que eu circulava o quarteirão, para voltar para casa. O prédio é novo, tem poucos apartamentos ocupados e no primeiro andar, só de lojas, nenhuma ainda foi aberta. Na porta de uma das lojas só uma manta lilás com dinossauros verdes, cuidadosamente dobrada,  um vidro de tinta para sapatos e um pedaço de flanela também dobrada. Na primeira vez que eu vi, achei que era só o lugar que alguém teria passado uma noite; comum, por aqui. Mas eu repetia o caminho e os pertences de alguém que eu nunca via, também se repetiam no pequeno quadrado da calçada. Só sabia que eram usados, porque mudavam de lugar - o que ficava no meio passava a ser extremidade e o que era extremidade, vinha para o meio - e as dobras eu reconhecia que também mudavam, eram maiores, menores, a outra parte da manta para fora - uma vastidão verde com dinossauros lilases.
- Dormiu aqui de novo.
  E eu que saía, ainda de madrugada, de casa e deixava a cama desfeita, porque voltava em uma hora, depois do terceiro dia de cenário repetido, passei a dobrar o lençol e a estender uma colcha na cama, com a mesmo zelo, cuidado para ir para o dia.

   Aos poucos alguns objetos foram aparecendo perto da manta, do vidro de tinta para sapatos e da flanela. Primeiro foi uma garrafa térmica vermelha com o cabo quebrado, depois uma almofada de coração com a frase "te mo", sem o "a", assim mesmo, vago, um bordado perdido e o coração que amava, passa a ter medo. Eu passo todos os dias antes das sete da manhã e só encontro vestígios de alguém que eu nunca vi, mas conheço um pouco pelo que ela deixa depois do sono.

  Alguém dorme há quase um mês na calçada por onde passo, pela manhã, distraída, algumas vezes, noutros dias numa espera angustiada, noutros, cantarolando a música que vou ouvindo e, mais ultimamente, esperançosa em encontrar o dono dos pertences tão íntimos, expostos no prédio novo, com um jardim que logo terminarão, na porta de lojas que num dia desses começam a funcionar. Quanto tempo ele passa na sua manta de dinossauros? Que idade tem? É um homem ou uma mulher? O vidro de tinta sempre me faz pensar que é um homem jovem, porque os engraxates da cidade são, em sua maioria, meninos. Mas a manta com motivos infantis, o coração sempre em pé, demarcando seu lugar, decorando com delicadeza um espaço  que ainda não foi reivindicado pelos proprietários, acaba me parecendo doméstico, amoroso e, talvez, um pouco feminino.

  Quem dorme há quase um mês sob a noite de estrelas da cidade, no calor de dezembro e janeiro e que dobra sua manta todos os dias depois de se levantar? Quem não vê meus pés, desesperados, porque acorda antes de mim? Quem é o dono da garrafa vermelha, do coração, da manta, do vidro de tinta e da flanela? E por que, se é engraxate,  não leva seus objetos de trabalho, quando se levanta? Ou no vidro não tem tinta e a flanela não lustra? Será sua distração para vida? Um anestésico para aliviar o medo, a dor e chegar ao sono? Com o que sonha? Será que abraça o coração enquanto dorme? Subo a rua e faço perguntas.

  Hoje, porque é domingo, acordei mais tarde. Tomei café e comi três torradas com o gosto de abacaxi, porque guardei-as num pote, onde há alguns dias tinha a fruta picada. Eu sempre me esqueço de colocar de molho com água sanitária e água quente. Então acabo comendo qualquer coisa com gosto de abacaxi, depois do esquecimento. É isso: uma coisa, ocupando o lugar de outra que ainda não se despediu, acaba por ser nova, com o gosto da antiga. O sol não era tão forte ainda, antes das nove, então fui andar pela mesma avenida. No verão, especialmente aos domingos, a avenida inteira tem o cheiro adocicado de abacaxi, pelo caminho três barracas, vendendo só abacaxi. Se eu não gostasse da fruta, teria ânsia, de tanto gosto e cheiro impregnado, mas não é o caso.

  Respirava fundo todo o cheiro doce e tentava decorar a música que tocava.
- Adoro essa música. Nunca vou saber ela completa, mas, também, para quem e onde eu cantaria?
  Quando fui virar o quarteirão, olhei para porta da loja e porque é domingo, a manta não estava dobrada ainda, mas esticada e embaixo dela uma pessoa, aquela a quem eu queria encontrar. A cabeça coberta, nem um pedaço de pele para fora, talvez nem fosse ainda dessa vez que eu a conheceria. Era uma montanha de dinossauros coloridos, a garrafa, o vidro e a flanela, do lado da cabeceira inventada e o coração em cima da montanha. Chego mais perto, daqui a pouco passo e não descubro quem é. A montanha de repente vira, se abre, um homem em posição fetal, deitado de frente para porta de ferro de uma futura loja, se descobre, estica o corpo lentamente, se vira e me olha. Não olha para os meus pés, que estavam na altura dos seus olhos, mas olha para mim e os olhos dele são castanhos, cor de calma. Penetraram em mim, sutilmente, sem invadirem. E eu vi tantas vidas nos dois olhos pequenos dele, vi gerações, ascendências, lutas seculares, quedas, resistências, dores e um coração agarrado aos pés dele.  

  Levei um susto. Minha pulsação aumentou, meu relógio vibrou, do mesmo jeito quando eu corro; só que eu completamente parada. Debaixo da noite, um homem jovem dorme, cabelos raspados, olhos doces marrons, em posição fetal. Se ele parecesse uma ameaça, de repente; se não o quisessem mais ali; se os donos das lojas ou dos apartamentos o expulsassem na minha frente e eu só quisesse abraçá-lo, uma voz brutal gritaria:
- Tá com pena? Leva o coitadinho para sua casa!

  E eu teria vergonha, não do grito.

  Debaixo da noite dorme um homem, que hoje eu vi e me viu. Como são seus suspiros, como era sua vida pregressa, qual será sua possibilidade futura? Faz orações enquanto estende sua manta de dinossauros, acredita em algo, esse homem? E se acredita, tem raiva ou esperança? Quem ele era antes de se abrigar no céu estrelado? Quanto tempo poderá ficar aqui? Quem vai tirar o seu lugar? Já se acostumou a ter e não ter mais? A estar e não estar mais? A ser e não ser mais? Qual a inconstância dele eu deveria aprender? Não tomar, mas repartir. Passo pelos olhos dele, olho para a manta e antes de subir a rua, vejo o coração.

  Não sei se alguém chamou a atenção dele para sua almofada de coração medrosa, mas hoje, enquanto eu passava, depois de ver os olhos dele, a almofada tinha um "a" recuperado com giz. Debaixo da noite, um coração que ontem temia, hoje é amor. É essa a inconstância dele que eu quero ter. Todas as noites, durante a semana inteira, eu quis que chovesse para refrescar meu sono. Agora, são quase sete da noite, eu olho para céu e torço para as nuvens irem embora.

  Eu nunca mais vou querer chuva, frio, insegurança, fome e nem gritos, nesta cidade, enquanto o homem do cobertor infantil, garrafa vermelha, vidro de tinta, flanela, coração amando de novo  e olhos derretidos de vida, estiver na rua. O abacaxi eu espero que continue alastrando seu cheiro bom.

- Tá com pena? Leva o coitadinho para a sua casa.
Eu trouxe, há três semanas, antes mesmo de ver seus olhos, ele já vinha comigo. Não precisa gritar, eu sempre trago. E com ele, mais esse desafio: recuperar o "a" e transformar o verbo e a ação.



quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Pelo direito ao grito, eu lato

  Eles têm insistido muito no silêncio dela. Primeiro colocaram as placas de metal, pintadas de branco, nas grades da varanda, limitada as descobertas, não há estranhamento de visão, susto ou arrebatamento pelo que ela ainda não conhece. Os cães latem, alguns com menor frequência ou  intensidade de menor alcance, mas é do cão o latir. Na linguagem  que é própria do cão, nós reconhecemos o que é ele e o que é dele. Espera-se o latido; estranho é se ele não vem.
   Mas, muito embora a visão horizontal do cão seja uma placa branca, desumanizada e fria, uma constante paisagem glacial na varanda que faz quase quarenta graus nestes últimos dias,  ele ainda tem o céu, os três membros da família, as visitas que a casa recebe e já descobriu um vão entre a grade e o muro de cimento, por onde ele coloca o focinho e acho que sente o que se passa na rua. Então, o cão late. Se eu, em casa, ouço de repente o cão latir, esqueço tudo o que estou fazendo e me concentro no seu latido, me emociono, quase tenho febre de felicidade, porque não puderam calar o que é o cão.

  Mas nos últimos meses, a vigilância aumentou demasiado. Escuto sua voz cada vez menos e, por isso, tenho menos momentos de alegria inesperada, pelo contrário, tenho estado ansiosa, abro a janela várias vezes ao dia, coloco a música mais baixa, abandono os fones e qualquer coisa que me distraia de ouvir os latidos que eu espero, que eu sei que pertencem a sua ancestralidade de cão. Demora muito a vir seu som às vezes, chego em casa, tomo meu banho atenta, porque a janela do banheiro é muito próxima à varada do cão, como, leio e deito, esperando um sinal do cão que não é meu, então, durmo e nada neste dia. De manhã acordo com seu latido, demoro a reconhecer se é mesmo dele ou se eu sonho que é.

  O controle e essa preocupação da família com os latidos do cão começaram depois de alguns meses da sua chegada. Nas primeiras semanas, pequeno ainda, ele só choramingava, medroso, inseguro, reconhecendo a casa que ofereciam a ele,  mal chegava perto da grade, tinha medo do menino, da mulher e do homem, latia só quando se aproximavam muito dele. Mas logo foi se acostumando, reconhecendo as vozes, o barulho do portão, quando a mulher chegava do trabalho, da porta, quando o menino ia para a escola, do carro, quando o homem saia  e passou a latir, antes mesmo de os verem. Perdeu o medo da grade, passava o dia olhando para a rua e latia, para os outros cães, para os outros meninos, mulheres e homens, para os carros e carteiros e tudo mais que passava a fazer parte da sua experiência no mundo. O cão existia independente do toque, o cão via, cheirava, ouvia, por isso, a voz.

  Mas o vizinho, do apartamento em cima do meu, não gostava de ter que ouvir o cão, começou a reclamar, foi quando puseram a placa na grade e arrancaram o cão da sua contemplação mais urbana. Insatisfeito, o vizinho reclamou mais, queria cada vez menos cão e mais silêncio. Começou uma guerra entre o homem e a família, mas só o cão é prejudicado. Fizeram um canil nos fundos da casa, passaram a prendê-lo quando as visitas chegam, não o deixam ir à chuva, protegem-no das folhas que caem das árvores quando venta, mas o homem continua.  A qualquer sinal do cão, grita, ameaça e o cão se torna mais e mais silenciado. A família não quer abrir mão do cão, o vizinho não entende absolutamente do que é feito um cão e do direito da família em tê-lo. Ficam e o calam porque querem amá-lo e mesmo que lutem muito contra o homem, acabam por ceder e ele ganha cada vez mais espaço. Não li a Arte da Guerra, quase  não assisti a filmes de batalha, mas daqui do meu apartamento, cada dia mais silencioso, percebo que o homem do apartamento de cima abre larga vantagem com a sua estratégia.

 Queria que entendessem, que pudessem enxergar o que eu vejo da minha janela. O amor não emudece, acho. Qualquer coisa que se pareça com amor, dá liberdade para a voz sair cada vez mais potente. Deixar gritar é um caminho para o amor. Não precisava a casa de madeira colorida, a ração mais cara na tigela com o nome dele, precisava era de resistência pela liberdade de quem amam.
 O vizinho do lado não sabe, mas já cedeu na pior das instâncias, a essência do cão está sendo massacrada e não há ninguém que a proteja. Quando o homem do apartamento grita e os vizinhos cedem, silenciando a cadela, do meu apartamento eu uivo, muito, muito forte.

  No início, na confusão de insultos trocados, ninguém me ouvia, ainda sim eu uivava, latia. Ontem, enquanto brigavam e eu comecei com o meu protesto barulhento, de repente, silenciaram eu eu não percebi, continuei  com o latido-desabafo. É estranho quando alguém prepara algo muito  importante a ser dito e ninguém ouve, as palavras saem, mas não chegam com precisão nos lugares a que se queria. Mas igualmente estranho é quando o silêncio respeita cada palavra preparada, elas parecem sair desencontradas. Invisibilidade e publicidade demais aprisionam o verbo. Meu último latido saiu envergonhado, porque eles ouviram uma mulher latir.

  Dirão que eu amo o cão, que eu deveria mesmo ter um. Que talvez devesse intervir e dizer que eu estou completamente desesperada para cuidar dele, mas não, eu não o amo e não sei ter cães, mas amo inteiramente a liberdade da voz e o direito de um cão ser o que ele é. Se o homem gritar, se a família o trancar em casa, eu vou latir, mesmo se fizerem completo silêncio. A minha voz sai mais, quando eu sei pelo que ela sai.



segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Banana, bolacha e batata

    Pelo seu cabelo amarelo e fino, quase as penas de um canário belga que eu tive um dia, jura que continua essa sua dança para sempre? Promete por essas pernas finas e ágeis que não vai esperar parada na fila por amor algum? Por essa gargalhada, só dispensada aos muito íntimos, promete nunca sorrir para agradar ninguém? Jura pela sandália de salto que você calça toda vez que a encontra fora do armário, que vai se equilibrar vida afora, sem medo, nas instabilidades bonitas da vida? Jura?  
  Pela cauda de sereia, com a qual sonha, pela geleia gosmenta rosa que você amassa sem cansar, que deixa cair no chão, no tapete e no sofá, promete que nada será capaz de apagar você, como apagam as marcas da geleia das tramas do tapete?

  Promete por esse coração inflável que você chuta, desenha, amassa, joga para o alto e esquece num canto, para depois recomeçar o ciclo, que vai tratar as dores de viver com  a mesma determinação?  Pela  maquiagem carregada de cor, brilho, sem direção certa, confusão de sombras e batons sobrepostos, jura que vai continuar  falante, única, pulsante, dançarina de corredor, sala e varanda? 

  Banana, bolacha - não é biscoito - com manteiga e batata frita, para comer os sete dias e água a todo o tempo, em copo limpo e só dela - por favor - arrasta o lenço azul pela casa, fica em frente ao ventilador para vê-lo voar. Quatro personagens num dia: pirata, princesa, gueixa e havaiana; teria mais se a tarde fosse mais comprida. Para trança torta dou a solução de entortar a cabeça.
- Coitada da menina, vai ficar com o pescoço assim o dia inteiro?
A menina é ela e ela tem compaixão da menina que é ela.
   O mesmo livro três vezes ao dia, a mesma atenção em cada leitura. Um outro livro,  vez ou outra, com as letras do alfabeto rimadas pelo poeta que eu tanto gosto, mas ela só quer exibir que já sabe os nomes de cada letra. A casa é quente, o vento é morno, mas toda ela é frescor - de músicas, palavras e ideias - tem dez unhas pintadas.
- Vermelha, azul e rosa. Até terminar os dedos, tá?
- Tá bem.

 Dormiu tarde, levantou cedo, comeu bolacha. Assistiu TV e comeu banana; viu que alguém mexia nas panelas e pediu batata para o almoço. Autointitulada "rainha da batata". Aprende uma palavra por dia e a repete ainda sem saber o significado, por causa desse aprendizado em curso, às vezes, as frases saem absurdas e fantásticas. Se não quer conversar, não responde a ninguém. Se quer bolacha, não adianta banana, se quer banana não adianta batata. Só posa para foto quando quer e para quem quer.
  A última a chegar, frágil, pequena e dez infâncias nas costas. Qualquer dia desses aparece por aqui crescida. Mas promete que não largará, ao menos, uma das infâncias pelo caminho?

  Jura pelo lenço vermelho que você esqueceu debaixo da cama, que desistirá do seu cansaço adulto, resistirá até a última gota de lágrima, sangue, suor ou suco de uva - o seu preferido, a cada vez que te pedirem para ser outra, mais obediente e menos tímida? E se tentarem calá-la, algumas vezes até conseguirão, promete que grita de novo ou inventa um jeito novo de dizer o que pensa, sente, quer, ou é?     
  Pelo sol que você pediu, no único dia que choveu, jura que não vai cair na conversa de que todos têm que ter planos, listas com metas e certezas na bolsa, convicções infinitas, partido, time e banda e se desesperar se não os tiver? Promete pelo girassol no seu cabelo que mudará de ideia, de caminho, de música, de preferências, de cardápio e, um dia, de livros, sem achar que só a calma da permanência é paz?

  Jura pelo mindinho, seu vizinho, maior de todos, fura bolo e cata piolho que vai sempre se lembrar de ser a roda de um moinho de criatividade, beleza e ideias que nunca param? Promete por todas as letras do alfabeto que terá opiniões e admitirá as incertezas sempre? E que terá dúvidas; um milhão. Terá medo; um diferente a cada hora. E se chegar lá,  não saberá. Mas se não chegar, também não. Continuará mudando, voltando o caminho, descendo antes da hora ou deixando passar o ponto?

  Lá fora chove forte, mas eu nem consigo prestar atenção nos raios ou granizo. Aqui dentro ferve e ela cresce, a cada minuto. Essa menina vive de sonho. Bolacha, banana e batata são só desculpas para sentar à mesa. Ela carrega dez infâncias, num ombro fino e com uma capa de lenço azul, uma delas é a minha, que ela me devolve a cada vez que se aproxima me chamando para brincar.
  Promete que se perder meu endereço, saberá que eu sempre morei em você e que sou a inquilina mais disponível para dança, leitura, maquiagem e conversa? Promete que continuará cruzando os dedos escondidos a cada promessa, por segurança, liberdade ou teimosia? Jura?